domingo, 24 de dezembro de 2017

Do duro sistema

Tinha um corpo esquálido. Seus braços morenos, tão finos quanto dois ossinhos, apoiavam-se numa espécie de retângulo metálico (chamarei assim, pois não sei o nome), enquanto os estreitos dedos seguravam na barra amarela à sua direita.
Por trás daquela gigante camisa, que praticamente engolia a garota, era fácil perceber dois vultuosos ossos, as escápulas. Mas usava um pequeno short jeans por baixo daquela miscelânea de vermelho, verde e amarelo. As cores que, juntas e listradas, como estavam, representa o regae.
Fiquei por uma parcela de tempo, o quanto me foi possível, isto é, enquanto estive em sua presença, a fitar incessante a tal menina. Ao passo que ela, aérea, talvez, não sei ao certo, observava a paisagem de fora do vidro da porta.
-Até que ponto é bela a magreza? _pensei. 
Pensei porque isto só me veio à mente.Eu geralmente não escolho o que pensar em momentos não programados para isso.
Pensei pois tantos de nós passamos muito a nos ocuparmos com uns dos números que nos definem, que esquecemos que nem sempre eles são sinônimo do que consideramos belo.
Estava diante de uma feia magreza. A magreza da fome,da necessidade, da apatia alheia, da falta de escolha, de oportunidades, talvez, de família.
Estava diante do menos saudável tipo dela, isto é, da magreza. 

Ahhh(suspiro)... eu olhava insaciável, na esperança de ter seu semblante voltado a mim, a fim de que eu pudesse ao menos captar o superficial dele e transformar em algumas humildes palavras. Mas não me foi lançada sequer a possibilidade de uma virada de perfil. Quem dirá algo mais.
-Sería mesmo necessário?
Prossegui distraída com sua presença. A fina menina desprotegida, desalentada, receptora de olhares de desprezo ou da falta deles. Habituada.
Mas alguém a notou além de mim, pouco depois.
Um rapaz se pôs atrás dela. Muito próximo, por sinal. De frente a seu dorso e se pôs a olhar sua bunda.

-Sai daí menina, sai daí._Eu tentava me comunicar mentalmente.

Mas ela prosseguia indiferente ao próprio ambiente, tal como o ambiente parece ser indiferente a ela.
Não notava ou não mais percebia os riscos desta falsa segurança que os anos de rua lhe haviam proporcionado. Parecia sentir-se incólume ou fraca demais para continuar lutando contra o que chamamos de sistema.
Por sorte estava eu lá, de resguarda, pronta para me dirigir àqueles maus olhos que espreitavam o ambiente, em busca da oportunidade. 
Mas ele nada fez. Desceu pouco depois, junto a mim e outras dezenas.
A garota permaneceu lá. Segurando-se no apoio, enquanto, a sua volta,tantos ingressavam e egressavam, rumo a seus lares às 17 horas e pouco da tarde.

-Você,para onde vai? Você vai? Para onde?  Sabe?

Ela, talvez mudasse um pouquinho seu semblante para frustração.
Que tristeza! _É de se pensar.
Ao menos eu assim penso. Pois estava, ao contrário dela, magra por opção, desgrenhada por mania, com largas roupas por conforto. E ía encontrar minha família no shopping, para retirar o amigo secreto e comemorar num restaurante fast-food famoso, e cujo hamburguer comi pela primeira vez e odiei. Ela não tinha sequer a chance de gostar.

É tão pouco e tão normal quando se habitua a esta rotina. Tão quanto ela provavelmente perambulava tranquilamente pelas ruas às nove da noite, enquanto eu atravesso a ponte próxima a meu condomínio rezando, quando está escuro e vazio.
A gente se acostuma tão facilmente que vamos sendo levados pelo automático irrefletido.
Nós escarnecemos de tanto que temos e esquecemos dos que não tem.
Substituímos o pensar acerca e a empatia pelo: "Que bom que a polícia está aí. Pelo menos esse vagabundo vai preso"._ foi o que ouvi, minutos depois de uma garota, de 8 ou 9 anos, num segundo coletivo.
Era um garoto, adolescente, pego por cidadãos e, em seguida, pela polícia, depois de roubar algo e tentar fugir.
Olhei o semblante deste quando meu ônibus passou perto.
Havia muitas pessoas ao redor. Algumas sorriam e comemoravam, ao passo que o menino tinha seus pulsos algemados e era levado, junto à triste expressão, à viatura.
Não me senti bem, como muitos pareciam ter ficado.
Eu não estava feliz ou aliviada ou tomada pelo prazer em vi-lo pagar.
Não senti, juntamente, dó. Porém, pesar. (não sei ao certo se são ou não sinônimos)

Pesar porque ele, assim como a tal garota, eram da parte abjeta da população. E, possivelmente, posição sem chance de transferência.
Fadados a serem frustrados, ignorados, mal olhados e a receberem sorrisos somente quando estando em pior situação. Pois má, vivem constantemente.
Ao contrário deles, a tal garotinha de 8 ou 9 e seu comentário, possivelmente reproduzido por osmose, estava acompanhada da genitora e uma outra moça. 
Por mais leiga que fosse, a genitora, é sua família, e como tal, responsável por transmitir-lhe digna educação, quanto a valores.

Estava também, em mesma situação, um menino de 9 ou 10, que vi nesta mesma semana com sua mãe no ônibus.
Ele, ao terminar de beber sua água, questionou o que deveria fazer com a garrafa.
-Jogue aí mesmo guri. Depois eles pegam e jogam no lixo. Quem manda não ter lixeiro.



-Que crianças estamos (mal)educando?_pensei.



Diferentemente das duas primeiras, estas outras estavam acompanhadas da genitora, e pareciam ter condições de viver incontestavelmente superiores, ao menos para o básico, para sobreviver.

Estas tinham, em teoria, opção, diferentemente das primeiras. E sorte por haver uma chance um pouco maior de mudança na casta social. Mas isso ocorrerá mesmo ou perderão o potencial pelo mau aproveitamento da oportunidade?
Talvez eu nunca saiba, delas ou das outras. Provavelmente o sistema prossiga com elas do mesmo modo que tem sido. E é triste assim pensar, mas o que posso fazer?
Sou eu bem pouco. Tão pouco quanto elas. Impossibilitada de, sozinha, reverter esta ordem fechada.
O que cabe a mim, acredito, é apenas agradecer pela sorte que tenho, pela família e pelas oportunidades. Já que não escolhemos. Só somos lançados nesse mar, com algumas pré-determinações duras de serem quebradas.
-Estude!_Minha mãe sempre me disse._Estude_É o que me aconselho, pois recebo este valor desde cedo._Estude. Pois há tantos que sequer têm a chance de estudar. Há meninos que não receberam ao menos a instrução, e outros com pais que acham a maior afronta ouvir da criança que ela quer estudar, e não pedir esmolas e prosseguir nesta "vida".

-Agradeça!

Como fui favorecida por receber bons conselhos que, gradativamente moldam minha história, meu percurso e meu destino. _Dê valor_Faço das palavras que recebo de minha mamãe, mantras, depois desta reflexão.
Pense: Quantos gostariam de estar aqui? Se não pode fazer algo para ajudar, ao menos agradece.

Ps: Aproveitando o espaço para agradecer à minha mamãe pelo livro que eu tanto queria <3
Ps²: Feliz natal!